Por Maciel de Aguiar
No ano de 1985, nos dias 5, 6 e 7 de julho, na então pequena, aristocrática e ex-escravocrata cidade de São Mateus – perdida no anonimato do Brasil, onde o Estado do Espírito Santo quase vira Bahia -, a célebre atriz Tônia Carrero e seu consagrado filho Cecil Thiré se apresentaram no Teatro Anchieta para o encerramento da temporada brasileira da peça ”A DIVINA SARAH”.
Escrita por John Murrell, com tradução de João Bethencourt e direção do próprio Cecil Thiré, além de cenografia e figurino de Naum Alves de Souza e iuminação de Iran Dantas, a peça teatral causou uma enorme repercussão.
E ela vinha de outras temporadas, sobretudo nos EUA, quando foi encenada na Broadway, em Nova Iorque, além da Europa, com outros elencos, mas contando a história de Sarah Bernhardt, a extraordinária atriz francesa que havia encantado as platéias dos maiores teatros do mundo.
No Brasil, a peça lotou os mais importantes teatros do Rio de Janeiro e São Paulo, e, em São Mateus, foi um sucesso tão arrebatador que veio gente de Belo Horizonte, Salvador, Vitória, Brasília e de outras localidades inserindo a secular cidade banhada pelo rio Kirikerê – como diziam os tupinambás – nos principais noticiários da imprensa brasileira.
Antes, a atriz Dina Sfat havia se apresentado no mesmo Teatro Anchieta com a peça ”Irresistível Aventura”, com igual sucesso e onde outros grandes artistas também se apresentaram, como Chico Anysio, Dercy Gonçalves, João do Vale, Luiz Melodia, etc.
Assim, os espetáculos com os mais famosos artistas brasileiros saíam do eixo Rio de Janeiro/São Paulo para se apresentar em São Mateus, transformando a tradicional cidade do Norte capixaba na ”CAPITAL CULTURAL DO ESPÍRITO SANTO”.
E, enquanto São Mateus respirava cultura da melhor qualidade, com inúmeros famosos da TV andando por suas ruas, acreditávamos que podíamos construir uma cidade melhor e possibilitar uma gestão municipal mais culta, responsável, pluralista e democrática.
Hoje, trinta e cinco anos após, quando Cecil Thiré beijou a face da eternidade, muita coisa mudou em São Mateus – algumas para pior – revivendo velhas vicissitudes dos séculos da escravidão com o abuso de poder, o fisiologismo e o assistencialismo atuando na compra de votos nos períodos eleitorais!
São Mateus triplicou a sua população e a cidade se converteu em bolsões de miséria onde o desemprego, a insegurança e a falta de qualificação profissional aparecem na radiografia urbana com absoluta nitidez. E, sem planejamento estratégico e investimentos em infraestrutura, a explosão demográfica a deixou muito maior em quase todos os setores e se avolumaram os problemas em decorrência de uma péssima gestão municipal que propaga a desinformação, a incúria, a inversão de valores e não faz investimentos em saneamento básico, Saúde, Segurança, Educação, etc.
O Sítio Histórico do Porto – que poderia gerar empregos e sustentar a cidade, se convertendo em uma Ouro Preto, Olinda e ou em um Pelourinho de Salvador – foi propositalmente abandonado em retaliação a quem o restaurou. Enquanto isto, um gestor municipal inculto, incapaz e despreparado para a função pública contrata trios elétricos e cantores do pior lixo musical da Bahia para realizar festas com programação de gosto duvidoso, sobretudo em Guriri, gastando milhões de reais com cachês artísticos e na contratação de palco, som, luz e tendas. Um escândalo que, em tempos pretéritos, por certo, teríamos na prefeitura e, principalmente, nas secretarias de Cultura e Turismo, uma ”Operação GAECO”!
Na eleição passada, o atual prefeito venceu o pleito com farta distribuição de água potável, em função de uma dramática crise hídrica. Quatro anos após, a crise hídrica continua sem solução e basta parar de chover que a água salgada volta às torneiras.
Denunciado pelo MPF, o prefeito teve o mandato cassado pelo TRE, mas o então Governador do Estado mandou o presidente do colegiado eleitoral conceder um ”efeito suspensivo”, como um salvo-conduto, e o TSE o absolveu, rasgando a legislação eleitoral, alegando que a distribuição de água potável para a população, em período eleitoral, foi por uma ”questão humanitária”.
Agora, para as próximas eleições municipais, o prefeito, candidato à reeleição, ”amparado pela pandemia”, está ”distribuindo milhares de cestas básicas, compradas com verba do Governo Federal, em troca de votos”, conforme denúncia do vereador Carlos Alberto Barbosa.
A diferença é que, com o atual ”Decreto de Calamidade Pública”, o ”crime” será se ele não distribuir esses benefícios!
Então, se em um cenário de terra arrasada, a distribuição de água potável foi considerada uma ”questão humanitária”, agora, com uma pandemia mundial e o amparo legal, a distribuição de cestas básicas, mesmo em período eleitoral, não irá configurar crime! Não haverá denúncia, muito menos contestação do resultado das urnas e, com dez candidatos no pleito, a sua reeleição estará garantida e o prefeito Poseidon continuará no cargo por mais quatro anos.
Assim, a cidade de São Mateus manterá a pior administração municipal de sua história, conduzida pela mais inoperante, fisiológica, assistencialista e irresponsável gestão pública do Estado do Espírito Santo, e com um slogan: ”PIOR DO QUE ESTÁ, NÃO FICARÁ!”
E as notícias não são mais as mesmas de quando as TVs e os jornais anunciavam os famosos artistas se apresentando no Teatro Anchieta.
Esta semana, a imprensa nacional noticiou que ”o prefeito de São Mateus fez para ele a maior doação, em espécie, de uma campanha política no Brasil”. Bateu o Record!
Também pudera, gastando – ainda segundo a Câmara Municipal de Vereadores -, ”mais de 90 milhões de reais com a contratação de trios elétricos e artistas da Bahia”, doar a si mesmo 150 mil reais para a própria campanha eleitoral é, digamos, insignificante! E ele alega que foi ”um erro”. Porém, até agora, o TRE, MPE, MPF e PF não alegaram nada!
Então, quando Cecil Thiré beijou a face da eternidade – comparando o passado com o presente da cidade onde ele magistralmente se apresentou com a sua mãe, a célebre atriz Tônia Carrero -, podemos facilmente constatar que não apenas perdemos um grande artista, mas, sobretudo, perdemos a decência, a honra, o zelo pelo erário e a noção da desfaçatez.
E, ainda, chegamos à conclusão de que – também – perdemos o caráter, perdemos a dignidade, perdemos a noção da responsabilidade administrativa, perdemos a informação do que fomos e do que somos, e, pior, temos a certeza de que, trocando o voto por água potável na eleição passada não foi crime, trocar o mesmo voto – agora – por cesta básica, é ”uma obrigação legal”.
Ainda bem que Cicil Thiré não pode mais voltar a São Mateus para não testemunhar que a ”CAPITAL CULTURAL DO ESPÍRITO SANTO” virou capital da incúria, da ignorância, da incompetência, do desmando, da cumplicidade, além da capital da compra de votos, capital do efeito suspensivo, capital do fisiologismo, capital do assistencialismo, capital do auto-financiamento em dinheiro vivo para a campanha eleitoral, capital do trio elétrico, capital do pior lixo musical da Bahia e, sobretudo, CAPITAL DA BUNDA QUE CANTA E DOS IDIOTAS QUE VOTAM E APLAUDEM!
Maciel de Aguiar
Escritor das barrancas do Cricaré.