Por Maciel de Aguiar
No ano de 1968, a Jovem Guarda — programa que teve início em 22 de agosto de 1965, que mesclava música, comportamento e moda, exibido nas tardes de domingo, pela TV Record, direto de São Paulo, como um fenômeno avassalador — demonstrava indícios de perda de popularidade, enquanto outras manifestações sociológicas, culturais e artísticas, como a Tropicália, o movimento Hippie e os estudantes saíam às ruas como protagonistas de uma “nova onda”, que iria varrer o Brasil, motivada por anseios de liberdade, provocando mudança de hábitos e costumes, e, sobretudo, quebrando paradigmas.
Impulsionado pelo sucesso de canções como Splish splash, “Quero que vá tudo pro inferno”, “Parei na contramão”, “Namoradinha de um amigo meu”, “É proibido fumar” e “O calhambeque”, um jovem cantor, natural do Sul do Espírito Santo, foi levado ao posto inconteste de “Rei da Juventude” e, ao mesmo tempo, não se apresentava como um líder de massas que pudesse se opor ao governo militar que decretaria o AI-5, fechava o Congresso Nacional, cassava os direitos políticos e implantava a repressão aos opositores do regime.
E, nesse cenário romântico, contestador e libertário, com várias tribos demarcando os seus territórios, a emissora anunciaria o fim do programa que havia levado uma multidão ao delírio nas imediações da Rua da Consolação, na Capital Paulista, e era retransmitido pela TV Rio para a Cidade Maravilhosa e reverberava por todo o país, liderado pelo jovem capixaba que ficou conhecido pelas canções descoladas das músicas de protesto, mas que falava gírias, usava cabelos compridos, pulseiras, roupas coloridas, calças calhambeque e vários anéis.
Porém, seis meses após ter deixado o programa Jovem Guarda — que era realizado no Teatro Record —, desfrutando de muito prestígio e enorme popularidade como o maior astro daquele movimento transformador que sacudia a Música Popular Brasileira, Roberto Carlos foi fazer um show em Vitória, a bela capital do seu Estado, e, no outro dia, 13 de julho de 1968, ao voltar para o Rio de Janeiro, passou por Cachoeiro de Itapemirim, sua cidade natal, onde havia nascido em 19 de abril de 1941, e se hospedou na casa da rua Rui Barbosa, 42, do seu primo Wanderley Braga.
Na “capital secreta do mundo”, como diria o cronista Rubem Braga, o “Rei da Juventude” receberia a visita de familiares, amigos de infância, fãs e, principalmente, da freira que tinha sido sua professora, “o havia protegido na sala de aula a pedido da própria mãe e o considerava um filho” que não teve. Acompanhada de duas irmãs, estava apreensiva, pois fazia quase duas décadas não via aquele ex-aluno e, mesmo assim, resolveu apertar a campainha para falar com o maior astro da MPB e disse o seu nome: Irmã Fausta.
Roberto Carlos, ao receber o recado, pediu licença aos que lhe dedicavam atenção e foi ao encontro da ex-professora do Colégio Jesus Cristo Rei — “que lhe ensinou as primeiras lições” — e, possivelmente, quando caminhava em sua direção, deve ter pensado o quanto aquela freira o ajudara naqueles dias infantes e difíceis, além do carinho, da paciência, da perseverança e do cuidado para que ele não se machucasse nas inúmeras travessuras e, sobretudo, cuidou de seus sentimentos e de suas dores, consoante um acontecimento distante que marcara sua vida.
E o jovem “Rei da Juventude” usava uma camisa florida, dois anéis nos dedos da mão direita, uma pulseira no braço esquerdo e, ao menos na aparência, não era mais o mesmo “menino Zunga”, mas trazia no semblante um misto de surpresa e gratidão, e se abraçaram como a dizer da alegria do reencontro, até que, refeita da emoção, Irmã Fausta lhe entregou um estojo que continha um símbolo da cristandade, que mandou folhear a ouro: o Sagrado Coração de Jesus com a inscrição JHS, das hóstias da eucaristia das missas da Igreja Católica.
Visivelmente emocionado, Roberto Carlos o segurou com o polegar e o indicador da mão direita, o levou à altura do peito — enquanto um fotógrafo desconhecido registrou a cena, eternizando um momento que marcaria o início de uma nova fase na sua carreira artística —, ao tempo em que a Irmã Fausta pedia que ele não o usasse em público, mas, no outro dia, o mítico medalhão, suspenso por um simples fio de energia, ornamentava o seu peito, exibindo aquela sublime e sagrada imagem pelas telas das TVs que invadiam os lares do Brasil.
A partir de então, surge a mais expressiva mudança na vida do Rei Roberto Carlos, sempre com o medalhão sobre a camisa entreaberta, além de ele aparecer em várias capas de seus álbuns e, para quem havia mandado ”Tudo pro inferno” — depois explicou que não estava mandando ninguém para nenhum lugar indesejado, queria apenas mandar o que não representasse o amor —, ele passou a compor músicas românticas e, sobretudo, fez, em parceria com Erasmo Carlos, a canção ”Jesus Cristo”, um de seus maiores sucessos, que o transformou em Pop Star.
Na infância, na enigmática Cachoeiro de Itapemirim — aos nove anos de idade —, Roberto Carlos Braga se apresentou na ZYL-9, em um domingo de fevereiro de 1950, e, ao voltar para casa, “com um punhado de balas nas mãos, disse para Dona Laura que queria ser cantor”, e, agora, estava de volta, em sua cidade natal, para iniciar, pelas abençoadas mãos da Irmã Fausta, o que os críticos chamam de “a fase do medalhão”, como um divisor de águas, quando se tornou o maior cantor romântico do Brasil e um dos maiores intérpretes da música universal.

Recentemente, em 14 de fevereiro de 2021, um domingo de carnaval, a suave e angelical Irmã Fausta beijou a face da eternidade, quando vivia na “Comunidade Religiosa das Irmãs de Jesus na Eucaristia”, às fraldas do majestoso Convento de Nossa Senhora da Penha, em Vila Velha, no Espírito Santo, e, ao saber da notícia, resolvi revelar o que ela assegurou que nem mesmo a Roberto Carlos contou do que havia lhe acontecido ao longo de vinte e cinco anos, desde a quase desconhecida Japaratuba, no Estado de Sergipe, onde havia nascido em 27 de maio de 1922 e batizada com o nome de Maria da Conceição Ramos.
Por mais de uma década, aquela freira de silhueta frágil e aspectos de santa me negou uma entrevista para o livro ROBERTO CARLOS AS CANÇÕES QUE VOCÊ FEZ PRA MIM — que escrevia desde 1969, entrevistando centenas de pessoas sobre as músicas do Rei que se tornaram fundo musical de suas vidas —, e, quando estava quase desistindo, surpreendentemente, ela mandou me chamar, pois estava com 96 anos e desejava me contar um segredo, mas que eu deveria guardar enquanto ela estivesse viva e somente revelar após a sua morte.
Quando recebi o recado, levei um susto e chamei uma pessoa de nossa relação para me acompanhar, porém ela pediu que fosse “uma conversa reservada”, pois recusara me contar o que havia sonhado, ainda em sua cidade natal e que havia decidido seguir a sua intuição e os seus sentimentos, mas, como não tinha coragem para dizer isso ao pai, Fausto Fortunato Ramos, certa feita, “ao ouvir, escondida, ele dizer que gostaria que uma de suas filhas fosse freira, fui procurar saber o que era ser freira e, quando descobri, fiquei muito feliz”, revelou.
Esclarecido o motivo de sua recusa inicial em conceder a entrevista para o livro sobre as canções de Roberto Carlos — no qual ela figura como a última entrevistada, no capítulo “Nossa Senhora”, falando sobre a música que havia marcado sua vida —, combinamos que não publicaria que ela “havia tido um sonho, aos dez anos, que não se casaria, nem teria filhos, mas que cuidaria de um menino como se fosse o seu filho, seria sua professora e guardiã”, mas era algo tão surpreendente e quase imaterial que não tinha como deixar de atender o seu pedido.
Ali, quase perdi o chão, quando ela me confidenciou que chegou a Cachoeiro de Itapemirim para dar aula no Colégio Jesus Cristo Rei, exatamente quando Roberto Carlos nasceu, em 19 de abril de 1941 — então, imaginei uma estrela cortando os céus e a conduzindo ao encontro daquele menino de seu sonho e que cuidaria dele como se fosse seu filho, seria sua professora e guardiã —, mas ela foi dar aula em Colatina, de 1943 a 1947, e, neste ultimo ano, por coincidência ou não, voltou a Cachoeiro de Itapemirim, quando ele sofreu um grave acidente.
Em 1949, como professora do Colégio Jesus Cristo Rei, Irmã Fausta avistou “um menino de muleta”, que não se incomodava com sua dificuldade física e brincava normalmente com as demais crianças e foi tomada por um enorme sentimento de afeição, e, “quando ele veio estudar na minha sala, com mais vinte e seis alunos, ao vê-lo sentadinho na primeira fila, gelei da cabeça aos pés, pois, sua mãe, Dona Laura Braga, pediu-me para protegê-lo devido ao acidente e, assim, guardei por todos esses anos esse segredo de minha vida!”, contou, emocionada.

Naquela noite, Irmã Fausta contou que quase não conseguiu dormir e, ao adormecer, sonhou com aquele menino como sendo o que teria como um filho e começou a acreditar que uma força divina a havia trazido da distante Japaratuba para ser freira em Cachoeiro de Itapemirim, para protegê-lo e educá-lo, “e ele era levado, ficava na porta da sala de aula, com a muleta, impedindo as outras crianças de entrar ou sair correndo; gostava de jogar bola, fazia travessuras, mas nunca permiti que zombassem dele, pois, naquela época, era preciso ter muito cuidado”.
Revelou, ainda, que, muitas vezes, o levava da escola até à casa de seus pais e, aos domingos, o ouvia se apresentar na Rádio Cachoeiro, até que, em 1955, “ele foi morar em Niterói e eu fui transferida para Vitória, depois, para o Rio de Janeiro, onde trabalhei no ‘Restaurante das Senhoras Brasileiras’, na Rua da Quitanda, 58, no Centro, mas chorava com saudade dele, até o dia em que voltei para Cachoeiro de Itapemirim, quando ele já era o ‘Rei da Juventude’, começava a fazer sucesso e, ao ouvir a sua voz, o meu coração parecia saltar pela boca”, disse.
Irmã Fausta também contou que, nesse período, o acompanhava de longe, pois ele se apresentava em clubes, programas de rádio e televisão, e tinha certeza de que “Roberto Carlos seria vitorioso como um grande cantor, pois era uma pessoa iluminada, bom filho e bom aluno, e, mesmo passando por uma grande dificuldade na infância, não havia se magoado, muito menos perdido a força de vontade de vencer na vida, e rezava muito por sua realização como artista, já que era tudo o que ele queria”, contou, emocionada.
Quando a Irmandade Jesus Cristo na Eucaristia comunicou que ela teria que deixar o hábito e devolver os pertences, “naquela mesma noite voltei a sonhar, desta feita para lhe dar o medalhão de presente, e, no sonho, Roberto Carlos cantava muitas músicas lindas, era aplaudido e admirado, e eu via o medalhão em seu peito, lhe protegendo e lhe dando sorte, e, no outro dia, solicitei à Irmandade que me permitisse dar o medalhão a quem cuidei como se fosse um filho, e fui autorizada a realizar uma das coisas mais importantes de minha vida”, contou com a voz embargada.
Nesse momento, Irmã Fausta, ou Irmã Fausta de Jesus Hóstia, segura um pequeno lenço de tecido, como a alvura do leite, enxuga algumas lágrimas que escorrem por sua face quase centenária, levanta a cabeça e perde o olhar no horizonte como a rememorar os anos distantes e, depois de uma eternidade de alguns segundos, volta a falar que jamais pensou que Roberto Carlos, mesmo depois de se tornar um cantor famoso, não a reconheceria, e revelou que não quis lhe contar sobre os sonhos, “mesmo sendo ele uma pessoa muito religiosa e temente a Deus”, disse.
Irmã Fausta justificou que não contou a Roberto Carlos que o protegia na escola por conta do acidente — “o que também era um pedido de sua mãe e evitei falar pelo fato dele não gostar de relembrar o que aconteceu” —, mas, na época, ele não se incomodava e até usava a muleta para se defender dos colegas maiores, e eu tinha muito cuidado com ele, não o deixava correr para não cair e se machucar e, mesmo sendo muito atencioso, inteligente e obediente, nunca o chamei ao quadro-negro pelo fato dele usar a muleta no braço direito e ser destro”, contou.
Irmã Fausta ainda fez questão de dizer que, “quando tinha alguma necessidade, Roberto Carlos estava sempre presente”, ele pagou as suas despesas médicas quando foi operada em Belo Horizonte, a mandava buscar para assistir aos shows, a levava para o seu apartamento, e, em seu aniversário, ela telefonava e perguntava: “O bebê já nasceu?, ele ficava feliz e acho que fiz o que Dona Laura me pediu”, revelou, demonstrando profunda afeição como quem mantinha com o Rei Roberto Carlos uma relação de “mãe e filho”, sobretudo no plano espiritual.
E, após 50 anos, em 2019, depois de entrevistar centenas de pessoas, artistas, jornalistas, intelectuais, motoristas, comerciantes, prostitutas, taxistas e demais fãs do Rei sobre a importância de suas canções nas vidas dessas pessoas, finalmente o livro ROBERTO CARLOS AS CANÇÕES QUE VOCÊ FEZ PRA MIM foi publicado, com a Irmã Fausta contando a sua história, no último capítulo, e lhe entreguei um exemplar autografado, e parte da edição teve a venda destinada para a Santa Casa de Misericórdia de Cachoeiro, por motivos óbvios!
Assim, até os seus últimos dias, Irmã Fausta tinha a certeza de que “o menino que considerava um filho jamais a esqueceu” e, quando recebia sua ligação, ele perguntava: “Como vai a irmãzinha?” Por isso, lembrava-se com saudade daquele 13 de julho de 1968, quando ele ouviu o seu nome e foi a seu encontro, mas a única vez em que Roberto Carlos não lhe obedeceu foi por uma boa causa — diante das câmaras de TV projetando sua imagem para todo o Brasil —, exibiu o medalhão com o Sagrado Coração de Jesus como um talismã da sorte. E que sorte!
Maciel de Aguiar
[email protected]
(027)999881257